Em espetáculo de horror, cadáveres com sinais de vilipendiação estavam expostos na cidadezinha de Kutuzvika
KHARKIV, Ucrânia — Os braços estendidos para trás, pesados. A cabeça a repousar sobre a estrutura de metal, o olhar focado nas nuvens. As pernas entreabertas.
De longe, a grotesca figura humanoide parecia estranhamente relaxada, como se tivesse decidido aproveitar os primeiros dias dessa primavera ensolarada no meio de uma estrada tomada por destroços. De perto, era possível ver que se tratava de um homem, provavelmente um soldado russo.
No peito nu, a pele carbonizada ganhou um tom escuro, quase negro. Nos pés, as botas estavam intactas. Nos braços, parte do uniforme protegera os pulsos. As mãos seguiam incólumes, guardadas pelas luvas. A cena tão cheia de tragédia e barbárie, por alguma razão, me fez lembrar de uma das maiores obras-primas da humanidade, a Pietá, de Michelangelo.
O corpo do homem vestido com peças de uniforme comuns aos soldados russos era apenas a apresentação de um espetáculo de horror tão típico das guerras. Ao seu redor, outros nove corpos de homens como ele, todos vestidos com uniformes também comuns aos soldados russos, estavam espalhados de forma nem sempre aleatória. Quatro deles cuidadosamente alinhados para que, do alto, a composição formasse a letra Z.
Os homens, todos aparentemente mortos por tiros, foram colocados nesse formato no estacionamento de um posto de combustíveis na entrada da cidadezinha de Kutuzvika, perto de Kharkiv. A letra Z se transformou em símbolo da ofensiva russa na Ucrânia. Usada inicialmente para identificar algumas unidades do Exército russo, assim como as letras O e V, a letra Z se popularizou e hoje é usada como peça de propaganda por Moscou.
Os corpos estavam ali havia dias. Exalavam o cheiro acre tão típico da carne putrefata. Alguns vertiam fluido corporal pelos orifícios naturais do corpo humano. Outros pelos ferimentos que lhes custaram a vida.
Um dos homens parecia ter tido a parte superior do corpo dilacerada por algum objeto explosivo. No local onde caiu, era possível distinguir apenas parte do torso, os quadris e as pernas.
Um outro corpo estava jogado em meio à vegetação que hibernou durante todo o inverno e agora cresce rapidamente com a chegada do sol, do calor e da chuva. Tinha buracos em várias partes do corpo. Talvez estivesse correndo, tentando fugir daquele palco de horrores, quando foi atingido pelos estilhaços de uma bomba ou quem sabe por tiros.
No acostamento da pequena estrada que liga Kharkiv ao vilarejo de Kutuzvika, os ossos de uma coluna vertebral quase intacta mostravam que uma pessoa havia morrido ali. A coluna destacava-se do do amontoado de carne, roupas e líquidos.
O ato de vilipendiar cadáveres é prática antiga nas guerras e quase sempre demonstra que as tropas estão agindo guiadas mais pela emoção do que pela razão.
Na Ucrânia, atos bárbaros como este não têm sido comuns. Como não são comuns também em quase nenhuma guerra em seus estágios iniciais. Mas, à medida que a violência aumenta, o desejo de vingança ganha corpo, e a absoluta impossibilidade de entendimentos não violentos assume o protagonismo, com corpos mutilados se tornando mais comuns. Foi assim no Iraque, na Síria ou no Afeganistão.
Pela Convenção de Genebra, vilipendiar um corpo é crime de guerra. Pela legislação brasileira, que por óbvio não versa sobre conflitos armados internacionais, o ato de mutilar um cadáver também é crime.
Batalhas sangrentas
Na última semana, forças russas e ucranianas têm combatido batalhas sangrentas pelo controle das aldeias que circundam a segunda maior cidade aqui da Ucrânia e distante apenas 30 quilômetros da fronteira com a Rússia.
As tropas de Moscou avançaram rapidamente contra Kharkiv nos primeiros dias da guerra. Chegaram aos vilarejos no entorno da cidade ainda em fevereiro, mas jamais conseguiram avançar para além do anel rodoviário que marca os limites da área urbana.
De lá, bombardearam Kharkiv de forma permanente, e com objetivos que pareciam absolutamente aleatórios, muitas vezes atingindo bairros residenciais de maneira constante. Centenas de civis morreram aqui por conta dos bombardeios.
No final de abril, as forças ucranianas e batalhões de paramilitares recém-incorporados ao Exército do país iniciaram uma contraofensiva na região para tentar empurrar as forças russas estacionadas na periferia da cidade em direção à fronteira. Tiveram vitórias importantes e conseguiram afastar as tropas russas pelo menos 10 quilômetros da entrada da cidade.
Kutuzivka, onde os corpos dos homens com uniformes russos foram encontrados, foi palco de batalhas intensas ao longo de toda a semana passada. Na quinta-feira, as forças ucranianas informaram que o pequeno vilarejo de pouco mais de mil habitantes havia sido reconquistado, apesar de os combates ainda estarem ocorrendo nos arredores da cidadezinha.
Os morteiros e os mísseis grad caem em Kutuzivka quase sempre que alguém aparece por lá. Os drones russos sobrevoam a região constantemente e nem mesmo os soldados ucranianos andam com liberdade pelas pequenas ruelas. Na primeira tentativa de retirar os corpos, o serviço de remoção precisou sair do local às pressas por conta dos intensos bombardeios.
— Estamos sendo observados o tempo todo, os inimigos ainda estão perto daqui – dizia um soldado que acompanhava uma equipe de remoção de cadáveres no sábado passado.
Ainda não se sabe quem são os mortos usados como protagonistas no espetáculo bárbaro de Kutuzivka. Mas é possível saber com alguma certeza que quem o realizou queria enviar uma mensagem. E, diante de tanta brutalidade, difícil não ouvi-la, mesmo que não se possa entender exatamente o que ela quer dizer.