Especialistas apontam impacto negativo da pandemia na prevenção
De 2010 a 2020, o Brasil registrou 783 mil casos de sífilis adquirida, com crescimento significativo da doença. Em 2010, foram 3,925 mil ocorrências dessa infecção e, uma década depois, o número subiu para 152,9 mil, total 39 vezes maior.
Quase no mesmo ritmo, a taxa de detecção cresceu 34 vezes. Em 2010, foram 2,1 registros por grupo de 100 mil habitantes e, em 2019, 72,8. As informações foram levantadas pela Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD), com base em dados do Ministério da Saúde.
Entre janeiro de 2018 e junho de 2020, o Brasil acumulou mais de 360 mil casos de sífilis. Segundo a SBD, tal quadro pode não retratar a realidade do país, uma vez que a pandemia de covid-19 tem impacto negativo na realização de consultas e exames de prevenção para esta e outras doenças. Com isso, diz a SBD, milhares de pacientes não procuraram os serviços de saúde ao manifestar sinais e sintomas de sífilis. De acordo com a entidade, o quadro de subnotificação compromete as estratégias de enfrentamento desse problema de saúde pública.
“Muita gente não tem conseguido fazer uma consulta ou exames em caso de suspeita da doença. Também não são poucos os que têm receio de ir a um posto de saúde ou hospital por medo de maior exposição ao vírus da covid-19. Um exemplo desse impacto no comportamento aparece na diminuição da participação das mulheres no pré-natal”, afirmou o vice-presidente da SBD, Heitor de Sá Gonçalves, confirmando que a pandemia de covid-19 afetou as notificações de sífilis no país. Ele disse à Agência Brasil que, com isso, deixaram de ser detectados muitos casos, o que deve impactar no aumento dos casos de sífilis congênita, ou seja, quando a criança já nasce com a doença. “A pandemia também tem atrapalhado o processo de busca ativa de contactantes no Brasil”, acrescentou.
Segundo Gonçalves, a covid-19 fragilizou estratégias de prevenção e combate à sífilis, bem como a procura de tratamento para outras doenças. “Cabe aos gestores, médicos e à população recuperar o terreno perdido e reativar as baterias para que essa doença seja diagnosticada e tratada de forma precoce”, afirmou o médico, ao destacar a dificuldade de acesso a serviços de saúde públicos e privados durante a pandemia, porque muitas unidades passaram a se dedicar apenas ao tratamento da covid-19. Para ele, isso contribuiu para reduzir a assistência à doença, os diagnósticos e as notificações. “Temos, no mínimo, cerca de 30% de abstenção de notificação: o que era 100 passou a ser notificado só 70. Como resultado, as pessoas continuam doentes, não iniciam o tratamento e continuam transmitindo”, o que poderá resultar, mais à frente, em descontrole da sífilis, com grande aumento dos índices de transmissão.
Conforme dados do Ministério da Saúde, de janeiro a junho de 2020, foram registradas 49 mil ocorrências de sífilis adquirida, o que corresponde à média de 8,2 mil casos por mês,sinalizando queda de 36% em comparação com o que foi informado, a cada 30 dias, em 2019. Entre janeiro e dezembro de 2019, o sistema de vigilância epidemiológica informou a ocorrência de152,9 mil casos de sífilis adquirida, o que equivale à média mensal de 12,8 mil registros. Em 2018, foram 158,9 mil ocorrências, ou 13,2 mil por mês. Segundo a SBD, apesar da constatação de uma tendência de queda de um ano para outro, a variação não chegou a 4% no período pré-pandemia (2018-2019).
Recém-nascidos
De acordo com o Ministério da Saúde, a sífilis afeta principalmente a população masculina. Dos 783 mil casos registrados entre 2010 e 2020, 59,8% eram de homens e 40,2%, de mulheres. A SBD ressaltou, entretanto, que muitas mulheres revelam sintomas durante a gestação, o que acarreta alto risco de contaminação dos recém-nascidos, originando a sífilis congênita.
Para Heitor Gonçalves, o maior número de casos de sífilis registrado entre homens reflete aspectos culturais e sociais arraigados na sociedade, que estimulam neste grupo determinados comportamentos de risco, inclusive no campo da sexualidade. O médico observou, porém, que, nesse contexto, a situação da mulher preocupa, porque ela fica vulnerável, e não são raras as vezes em que é atingida pela doença e nem sabe de que forma.
Gonçalves explicou que a transmissão vertical ocorre quando a criança é infectada por alguma infecção sexualmente transmissível (IST) durante a gestação, o parto e, em alguns casos, durante toda a amamentação. Todas as gestantes e suas parcerias sexuais devem ser investigadas para IST durante o pré-natal e no momento do parto, especialmente para o HIV, sífilis e hepatites virais B e C. Ao mesmo tempo, devem ser informadas e orientadas sobre a prevenção e sobre os riscos da transmissão vertical para a criança, quando a gestante é infectada, especialmente de HIV/aids, sífilis e hepatites virais B e C.
A presença de IST na gestação pode afetar a criança e causar complicações, como abortamento ou natimortalidade, parto prematuro, doenças congênitas ou morte do recém-nascido.
Em 2016, foram estimados 661 mil casos de sífilis congênita no mundo. No Brasil, a partir de 2014, aumentaram as notificações de casos de sífilis adquirida na população adulta, sífilis em gestantes e sífilis congênita. Isso demonstra que há um sistema importante de prevenção e controle que precisa ser preservado para que tais indicadores caiam de modo consistente, disse Gonçalves.
Escolaridade
Conforme a pesquisa da SBD, de 2010 a 2020, 357,1 mil mulheres foram diagnosticadas com sífilis adquirida durante a gravidez, a maioria delas na faixa etária de 20 a 29 anos (53% dos casos). Em seguida, estavam pacientes de 15 a 19 anos (25%) e de 30 a 39 anos (19%). A maior parte das infectadas tinha baixa escolaridade e baixo poder aquisitivo. Segundo a sondagem, do total de mulheres grávidas com sífilis, 29% tinham ensino fundamental incompleto, o que sugere a maior prevalência em populações socioeconomicamente mais vulneráveis. Em seguida, vinham grupos com ensino médio completo (17%); médio incompleto (14%); e fundamental completo (10%). As mulheres com ensino superior representavam 2% do total e as analfabetas, 1%. Já 27% não informaram o nível de escolaridade.
Segundo Gonçalves, a baixa escolaridade indica menor capacidade de conhecer alterações no organismo e de reconhecê-las como anormais e indicadoras de uma patologia, bem como não procurar assistência médica imediata. O médico enfatizou que educação sexual também faz parte da escolaridade e citou outro dado preocupante: mais da metade (55,9%) das mulheres com sífilis adquirida entre 2010 e 2020 eram pardas e 9,9%, pretas. As grávidas da cor branca somavam 23,7% dos registros; enquanto as amarelas e indígenas, juntas, eram apenas 0,4% do total. Não fizeram declaração de cor ou raça 9,7%.
Na opinião do especialista, os dados oficiais deixam ver de forma clara que a sífilis congênita, relacionada diretamente à contaminação de mulheres, é um problema em crescimento. No primeiro semestre de 2020, o Brasil teve 8,9 mil diagnósticos da doença em recém-nascidos, ou seja, 1,5 mil pacientes a cada mês. Onze anos antes, em 2010, a média girava em torno de 579 registros mensais. No período de 2010 a 2019, os casos tiveram expansão de 6.946 para 24.130 diagnósticos por ano.
Subnotificação
O coordenador do Departamento de IST & Aids da SBD, Márcio Soares Serra, destacou que o quadro de subnotificação deve ser observado atentamente, porque pode agravar a situação no médio e longo prazos.
“Muita gente não tem conseguido, ou tem receio de agendar consultas por causa da covid-19. Há, por exemplo, a diminuição de pré-natal entre as mulheres. Outro ponto é que não temos uma busca ativa de contactantes no Brasil. Além disso, apesar da sífilis ser uma doença de notificação obrigatória, nem sempre isso é feito. Somados, todos esses fatores podem complicar ainda mais nossa situação epidemiológica”, afirmou Serra.
Ele defendeu o diagnóstico precoce, que dá ao paciente chances de não desenvolver formas mais graves da doença. “A sífilis primária e a secundária podem evoluir sem tratamento. Caso o paciente permaneça com síndrome latente por muito tempo, vai continuar transmitindo. Este é um dos fatores que podem agravar ainda mais o que temos visto atualmente”, disse Serra, alertando sobre a falta de campanhas de conscientização de doenças sexualmente transmissíveis, que fazem falta em época de festas, principalmente, como o carnaval, e que costumavam ocorrer anteriormente no país.
A tendência de elevação de casos dessa infecção sexualmente transmissível é observada também em países desenvolvidos, como os Estados Unidos, onde, na última década, a sífilis se consolidou como um problema de saúde pública. Segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, do nome em inglês Centers for Disease Control and Prevention) foram notificados naquele país em 2019 cerca de 129.813 casos da doença. Após uma baixa histórica em 2000 e 2001, a taxa de sífilis entre os norte-americanos vem aumentando a cada ano, com variação de crescimento de 11% entre 2018 e 2019, de acordo com a SBD. Esses são os últimos dados disponíveis.
“É uma tendência internacional, e o Brasil faz parte do grupo de nações com números alarmantes. Por ser uma doença com evolução grave, até mesmo fatal, se não tratada adequada e precocemente. É fundamental que médicos e autoridades públicas permaneçam em alerta, atuando em ações educativas de prevenção e apoiando as fases de diagnóstico e tratamento”, afirmou Gonçalves.
Sintomas
A sífilis é uma IST com diferentes estágios de evolução e variados sintomas clínicos, entre eles, manifestações dermatológicas. A doença é causada pela bactéria Treponema pallidum. Apesar de ainda altamente prevalente, a sífilis tem tratamento simples e eficaz, por meio do uso de penicilina benzatina, que é administrada de acordo com o estágio clínico do paciente.
A doença pode ser classificada como sífilis primária, secundária, latente ou terciária. No estágio primário, geralmente se apresenta como uma pequena ferida, no local de entrada da bactéria, que pode ser o pênis, a vagina, o colo uterino, o ânus ou a boca. A ferida aparece alguns dias após o contágio, é normalmente indolor e desaparece sozinha, em poucas semanas.
A SBD ressalta que, quando a infecção não é tratada, a bactéria permanece no organismo e a doença evolui para os estágios de sífilis secundária (quando podem ocorrer manchas, pápulas e outras lesões no corpo, incluindo palmas das mãos e plantas dos pés, além de febre, mal-estar, dor de cabeça e ínguas) ou então sífilis latente (fase assintomática, quando não aparece mais nenhum sinal ou sintoma). Após o período de latência, que dura de dois a 40 anos, a doença evolui para a sífilis terciária, uma condição grave que leva à disfunção de vários órgãos e pode provocar a morte do paciente. Costuma apresentar lesões ulceradas na pele, além de complicações ósseas, cardiovasculares e neurológicas.
Além da sífilis adquirida, outra forma de manifestação dessa IST é a sífilis congênita, transmitida por via placentária da mãe para o filho. Com isso, o recém-nascido pode apresentar sintomas que incluem baixo peso ao nascer ou dificuldade de ganhar peso, sequelas neurológicas, inflamação articular, dores nos ossos, perda visual e audição reduzida ou surdez, entre outros. A doença comumente é responsável por abortos espontâneos, prematuridade e óbito neonatal.
Prevenção
A forma mais segura de prevenção contra a sífilis é o uso do preservativo masculino ou feminino durante a relação sexual, diz a SBD. Todo paciente que mantém atividades sexuais de risco ou se expõe a relações desprotegidas deve procurar, o mais rápido possível,uma unidade de saúde para fazer o teste rápido de detecção da sífilis, que é gratuito na rede pública.
De acordo com o vice-presidente da SBD, a prevenção e o tratamento da sífilis passam por diferentes vias. “Em primeiro lugar, a população deve estar consciente dos riscos inerentes à doença e evitar comportamentos que a exponham à contaminação. Da mesma forma, deve estar informada e atenta aos sinais e sintomas, procurando ajuda médica o mais cedo possível. Quanto mais cedo o diagnóstico é feito, mais rápido começa o tratamento. Isso significa a cura e a recuperação do estado de saúde”.
Gonçalves recomendou que os homens, em especial, adotem um comportamento sexual seguro, sem promiscuidade, com uso de preservativo. “Isso é fundamental”. O segundo ponto é a educação em saúde nas escolas, nas igrejas e associações de moradores, para que as pessoas conheçam a doença e saibam se prevenir.
A SBD aconselha que as gestantes também fazem testes para a sífilis. Se a grávida receber o diagnóstico e realizar tratamento adequado, é possível prevenir a transmissão para a criança. “Por isso, é de suma importância insistir na testagem de pacientes com vida sexual ativa. Aos dermatologistas, a recomendação da SBD é para que redobrem a atenção, uma vez que as manifestações na pele são sinais relevantes e recorrentes neste tipo de infecção”, concluiu Sá Gonçalves.
Fonte: Agência Brasil